terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O artista hoje: entre o 'proponente' e o pedinte


O artista hoje: entre o 'proponente' e o pedinte


     Por / Almandrade


O artista que passa o tempo recluso na solidão do ateliê, trabalhando, desenvolvendo sua experiência estética, como um operário da linguagem e do pensamento, está em extinção. É coisa de museu.

Ou melhor, é raridade nos museus de arte, que estão deixando de ser instituições de referência da memória para servir de cenários para legitimação do espetáculo. Às vezes, com míseros recursos que ficamos até sem saber direito: quando nos deparamos com baldes e bacias nessas instituições, se são para amparar a goteira do telhado ou se se trata de uma instalação, contemplada por um edital para aquisição de obras contemporâneas...

O que interessa na politica cultural nem sempre é a arte e a cultura, e, sim, o glamour. Em nome da arte contemporânea, faz-se qualquer coisa que dê "visibilidade".

As políticas públicas foram relegadas às leis de incentivo à cultura e aos editais públicos. Nunca se fez tantos editais neste País, como atualmente, para, no fim das contas, fazer da arte um "suplemento cultural", o bolo da noiva na festa de casamento.

Na fala do filósofo alemão Theodor Adorno: "As obras de arte que se apresentam sem resíduo à reflexão e ao pensamento não são obras de arte". Do ponto de vista da reflexão, do pensamento e do conhecimento, a cultura não é prioridade. Na política dos museus, o objeto já não é mais o museu que se multiplicou, juntamente com os chamados "centros culturais", nos últimos anos.

Com vaidade de supermercado, na maioria das vezes, eles disponibilizam produtos perecíveis, novidades com prazo de validade, para estimular o consumo, vetor de aquecimento da economia. A qualificação ficou no papel, na publicidade do concurso.

Esses editais que bancam a cultura são iniciativas que vêm ganhando força. Mostram ser um processo de seleção com regras claras para administrar o repasse de recursos, muito bem vendidos na mídia, como métodos de democratizar o "acesso" e a "distribuição de verbas" para as práticas culturais.

Mas nem são tão democráticos assim. Podem ser um instrumento possível e eficiente em certos casos, mas não são a solução, é possível funcionarem, também, como escudo, para dissimular responsabilidades pela produção, preservação e segurança do patrimônio cultural.

Considerando-se, ainda, a contratação de "consultorias", funcionários, despesas de divulgação, inscrição... o trabalho árduo e apressado de seleção... é tudo, enfim, um custo considerável, que, em último caso, gera "serviços" e renda.

O artista contemporâneo deixa de ser artista para ser proponente, empresário cultural, "captador" de recursos, um especialista na área de elaboração de projetos, com conhecimentos indispensáveis de "processo público" e interpretação de leis. Dedica grande parte de seu tempo a esse negócio burocrático, que é a elaboração e execução de projetos, prestações de contas etc., todos contaminado pela lógica do marketing... coisas incompatíveis com o artista em si, que apostou na arte como uma "opção de vida" e com forma de conhecimento, algo que exige dedicação exclusiva...

Ou, pior ainda: o artista fica à mercê de uma "produtora cultural", para quem essa política de editais e fomento à cultura é, aliás, um excelente negócio...

Mais uma coisa é preocupante: e se essa política de editais se estender até a sucateada área da saúde, por exemplo? Imaginem uma "seleção pública" para pacientes do Sistema Único de Saúde, que necessitem de procedimentos médicos... Os que não forem "democraticamente contemplados", teriam de apelar para a providência divina, já engarrafada com a demanda de tantos pedidos...

Nem é bom imaginar. Que esta praga fique restrita aos limites da esfera cultural... Na pior das hipóteses, é uma "torneira" que sempre se abre para atender parte de uma superpopulação de artistas, proponentes, pedintes...

O artista, cada vez mais, é um técnico passivo com direito a diploma de "bem comportado" em "preenchimento de formulário". E seu produto ficou relegado ao controle dos burocratas do Estado, e à "boa vontade" dos executivos de marketing das grandes empresas...

Se o projeto é bem apresentado, com boa "justificativa" de gastos e retornos, o produto a ser patrocinado ou financiado... se é mediano, se é excepcional, não importa! O que importa é a "formatação", a "objetividade" do orçamento, a clareza das "etapas" e a "visibilidade", o "produto final"...

Como sempre, existem as chamadas exceções, mas...

Almandrade

(artista plástico, poeta e arquiteto)

http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp


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  • Karen Sá    disse no "cultura e mercado":

A política de editais confirma que a tentativa de impregnar o governo, ou melhor, o Estado, de um conceito antropológico de cultura está longe de tornar-se realidade.

Na verdade a forma de encarar a cultura sempre será uma disputa de poder que começa pelo próprio conceito, pela definição sobre o que é cultura, eternizada nos critérios de escolha dos projetos resultado da visão de cultura de quem os definem, de quem está no momento com esse poder.

Seu exemplo da saúde é perfeito! Essa política de editais faz exatamente isso com as pessoas, que no caso da cultura não são pacientes que ora são contemplados ou não, podendo ou não ser atendidos pelo SUS. Mas são pessoas ou grupo de pessoas que tentam simplesmente se autorepresentar, existir.

O fato é que seja através da saúde ou da cultura, a falta de apoio, de recursos, de estrutura leva a morte. Sei que para alguns essa analogia é esdrúxula, mas não é.

A falta de espaço de representação, da práxis, e a ausência de oportunidades de realizar a representação de seus espaços, leva ao desaparecimento das culturas porque a preservação de um modo de pensar só é possível se ele for praticado. Isso o fortalece.

Essa política de editais demonstra que a cultura é um negócio capaz de ser selecionado e objetificado e não uma necessidade humana de existir e, que enquanto necessidade, um direito não pode passar por uma triagem.

Me parece que a visão monolítica do Estado não será capaz de administrar a cultura em seu sentido antropológico, mesmo publicando aos quatro cantos o discurso da descentralização. É necessário retroceder ao estado de Estado, pensar pequeno, viver em feudos. As próprias formas de financiamento é fruto de uma forma de pensar a cultura. Por que deve existir uma única forma, por que uma política para todo um país tão diverso. Conceito antropológico de cultura e Estado parecem inversamente proporcional. Quanto mais leio Castoriádis mais claro fica para mim o paradoxo.

www.culturaemercado.com.br

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